18º Encontro : E quando
falta a espiritualidade ?
Os ventos favoráveis
impulsionavam o barco de esperanças de meu amigo. Nesta semana estava quase
eufórico. Seus exames demonstravam isso. O PSA tinha caído para 13. Não estava
totalmente eufórico, porque tinha consciência que os números não são absolutos e
às vezes, tem embutido questões que o laboratório não capta. Seu estado geral
era muito bom em todos os demais marcadores.
Com isto, iniciamos mais uma
semana de exercícios na Academia. Aproximava-se a Maratona de Porto Alegre e
muitos colegas iriam participar. Alguns na Meia Maratona, outros nos 10km. Meu
amigo ficava se lamentando. Há dois anos, tinha corrido a Meia Maratona , com
um tempo excelente para sua idade (68anos): 1h 58min , nos 21.150 m. Ele me
contou não havia corrido tal distancia. Fazia normalmente 10km nas competições.
Nesta, ele correu como nas habituais. Correu os primeiros 10km e depois o resto
era lucro. Quando viu a marcação de 15km deu-se conta que só faltava 5km e
apertou o passo. Assim foi indo para o final :21.150m. Seus filhos o aguardavam
na linha de chegada, para felicitá-lo.
Agora, isto era coisa do passado
e não sabia se um dia voltaria a correr. Seu desejo e impulso não diminuíam,
mas suas pernas, desgastadas pelas quimioterapias não lhe davam condição. A
musculação na academia ajudava , mas o pulmão parecia ter que bombear oxigênio
, num ambiente de ar rarefeito. Não supria suas necessidades.
Uma senhora amiga da Academia,
cujo marido enfrentava também um câncer no estômago, veio lhe perguntar sobre suas
visitas a Florianópolis, no Ribeirão da Ilha e como isso poderia ajudar seu
marido. Alegava no entanto, ele não tinha nenhuma espiritualidade.
Percebi meu amigo ficou sem
palavras . Depois se dirigindo a ela perguntou :
— Em que ele acredita? Seu desejo
de cura vem de onde? Ele tem que encontrar dentro dele, uma pequena chama, uma
esperança para cultivar. O desejo de viver deve vir acompanhado de fé nos
medicamentos, nos médicos e depois no sobrenatural. Não se vende
espiritualidade em farmácias. Quando se vai ao fundo do poço, para emergir, só
se sobrevive se acreditarmos em algo mais.
Ela agradeceu e saiu cabisbaixa. Não
comentamos mais sobre o assunto. Meu amigo tinha posições muito claras sobre
isso . Ele foi feliz na resposta, induzindo ela a ajudar o marido, na buscar
por respostas dentro dele.
Lembrei-me do conto incompleto
que ficou para trás, semana passada. E cobrei. Ele prontamente foi a sua
mochila e voltou com uma folha impressa:
O uniforme era o
disfarce.
Francisco acordou neste dia antes que sua mãe o chamasse. A
expectativa de participar pela primeira vez do desfile de Sete de Setembro
fazia seu coração bater mais rápido. Correu os olhos em cima da cama para
confirmar, seu uniforme estava ali. Viu a camisa branca, as meias e a calça
azul marinho. E os sapatos? Eles tinham ido comprar num local chamado
bric-brac.
-Mãe! E os sapatos? A
mãe correu para a cozinha. Deu-se conta da tragédia. Colocou para secar no
forno do fogão de lenha. Ficou ali.
Mãe solteira e empregada doméstica colocava todos seus ganhos
para manter Francisco numa escola de irmãos lassalistas e sonhava vê-lo
formado. O uniforme era o disfarce necessário para proteger o menino de
qualquer discriminação.
Na cidade os jovens vivenciavam estes dias como se fossem os
únicos a desfrutar deste momento. Havia uma disputa entre as escolas, pela
melhor apresentação nos desfiles. A preparação começava ainda em agosto. Ainda
fazia muito frio e os ensaios eram organizados pela manhã. O alinhamento, o
passo certo, a cabeça erguida, eram requisitos para ter uma marcha de grupo,
como um pelotão militar, perfilados e sem correções.
Para Francisco, todo o dia ensaiava com sua turma, o dia
chegou. O sapato retorcido pelo calor não permitia que seu pé se acomodasse no
calçado, por mais que tentasse. Francisco começou a chorar. A mãe buscava
alternativa. Outro sapato?. Mesmo com dinheiro, onde comprar naquela hora?
Tinha que pensar e rápido.
Nos desfiles, a banda era o centro das atenções. Treinavam todos os
dias secretamente, para impedir seus acordes pudessem ser copiados pelas demais
escolas. O maestro rege banda, com sua batuta, ditando o ritmo dos bumbos,
tarolas, pratos e clarins. Ele chamava para si a atenção e concentrava todos os
olhares e ouvidos. Cada membro sabia seu papel, quando devia entrar e qual sua
participação nesta partitura. Mas a cereja do bolo era a baliza. Uma aluna era
a escolhida para ir à frente da banda fazendo coreografias.
Num uniforme com jaqueta de veludo bordada, meias brancas longas,
cobriam as pernas e um short curto da cor da jaqueta. Luvas, chapéu e com um bastão, levado na mão
direita, completavam a indumentária. Como uma rainha de bateria ela ditava o
ritmo da banda. O charme, a concentração e a ginga marcavam sua apresentação.
Era um show à parte.
As autoridades, postadas no Altar da Pátria, viam passar as escolas e
bandas, as quais eram aplaudidas e faziam continência ao cruzar em frente a
elas. E ali vinha Francisco, com o peito estufado, uniforme completo, no mesmo
ritmo dos demais. Nem sentia os pés. Apenas uma umidade neles. A mãe,
orgulhosa, sabia que estava no caminho certo.
No momento de hastear a
bandeira, todos cantavam o Hino Nacional. Nas calçadas lotadas podia se ouvir o
rufar dos tambores e os gritos de mães e parentes, entusiasmados com a
apresentação das crianças e jovens.
Quando terminou, Francisco
procurou sua mãe no meio da multidão. Bastou um aceno. Seu olhar brilhou. Como
uma centelha, ele lançou-se aos seus braços. Então, ela o abraçou e
abaixando-se, retirou seus sapatos. As meias estavam vermelhas de sangue. O
corte cirúrgico que ela fez nos sapatos, retirando o contraforte com uma faca
afiada e embebendo com álcool, para o couro dar de si, não impediram os
ferimentos. Os pés estavam lanhados. Mesmo assim, o desfile tinha um gosto
especial para os dois. Ninguém tinha percebido. O uniforme era realmente um
disfarce perfeito.
— Mas bah tchê !! Falei com voz
entusiasmada. Você está melhor que a encomenda! De onde tira essas ideias ? Nas
madrugadas em vez de dormir, ficas criando “causos” ? Rimos muito e pedi para
ficar com o conto impresso.
Nossos encontros começam ou
terminam de forma surpreendente. Isto dá sabor aos nossos dias e abre
perspectivas para nossa amizade, sempre crescente.
JTBrum 2019
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