segunda-feira, dezembro 31, 2018





17º Encontro : Medos e contos !! 

As semanas corriam e nós continuávamos nossa rotina . Dos encontros na Academia, às conversas alongadas entre os exercícios. Os números do PSA no último exame melhoravam. Ficava muito mais animado. Agora estava com 15. E as quimioterapias continuavam . Passava incólume por elas, embora com os inconvenientes de sempre.
 Falamos dos medos e de pensamentos que assombram a mente das pessoas, que por razões de doenças ou de depressão sentem-se acuadas. Medo de ficar sozinho. Medo de ser um fardo. Medo de abandonar os filhos e os netos. O medo das histórias inacabadas. Hoje a palavra “câncer” não é mais sinônimo de morte. Mas ao ouvi-la pela primeira vez falta o chão. Ela evoca medos. Sombra, onde existia só claridade.
 “Para muitos pacientes, é a oportunidade de refletir sobre a própria vida, sobre o que se quer fazer dela. Sim, é possível que eu morra mais cedo que o previsto. Mas é possível que eu viva mais tempo também. Em todo o caso , agora vou viver a minha vida da melhor maneira possível. É a melhor maneira de me preparar para o que vai acontecer, para o que quer que tenha que acontecer.” (David S.Schreiber)
 Trocamos de pauta. Falamos sobre contos, crônicas e poesias. Agora era seu assunto preferido. Sempre tinha um aspecto interessante a contar ou uma referencia de algum instrutor do curso que valia a pena referir. Ai sem mais, nem menos, me veio ele com um texto, retirado da mochila, e me pediu para ler e opinar.  

O uniforme era o disfarce.

Francisco acordou neste dia antes que sua mãe o chamasse. A expectativa de participar pela primeira vez do desfile de Sete de Setembro fazia seu coração bater mais rápido. Correu os olhos em cima da cama para confirmar se seu uniforme estava ali. Viu a camisa branca, as meias e a calça azul marinho. E os sapatos? Eles tinham ido comprar num local chamado bric-brac.
 -Mãe! E os sapatos?
A mãe correu para a cozinha. Deu-se conta da tragédia. Colocou para secar no forno do fogão de lenha. Ficou ali.
Mãe solteira e empregada doméstica colocava todos seus ganhos para manter Francisco numa escola de irmãos lassalistas e sonhava vê-lo formado. O uniforme era o disfarce necessário para proteger o menino de qualquer discriminação.

Na cidade, os jovens vivenciavam estes dias como se fossem os únicos a desfrutar deste momento. Havia uma disputa entre as escolas, pela melhor apresentação nos desfiles. A preparação começava ainda em agosto. Ainda fazia muito frio e os ensaios eram organizados pela manhã. O alinhamento, o passo certo, a cabeça erguida, eram requisitos para ter uma marcha de grupo, como um pelotão militar, perfilados e sem correções.
Para Francisco, todo o dia ensaiava com sua turma, o dia chegou. O sapato retorcido pelo calor não permitia que seu pé se acomodasse no calçado, por mais que tentasse. Francisco começou a chorar. A mãe buscava alternativa. Outro sapato?. Mesmo com dinheiro, onde comprar naquela hora? Tinha que pensar e rápido. 

Prometeu que no nosso próximo encontro, traria o final da historia. Fiquei curioso e cobrei o restante do texto. Ele sorriu enigmático e disse-me que tivesse calma ...

Estava tomando gosto pela escrita e os aspectos mais críticos de sua doença pareciam ficar no seu subterrâneo interior, mergulhada entre água cristalina e as impurezas decorrentes dos pensamentos obscuros da moléstia.
Estes lances do meu amigo, às vezes cômico, por vezes taciturno, davam um inesperado tempero, para nossos encontros. Saíamos sempre na expectativa do que nos reservava o dia seguinte.

 

JT Brum 2018

 


segunda-feira, dezembro 24, 2018



16 º Encontro : Digressões sobre a doença ! 

A vida de meu amigo e seus exames de PSA comportava-se como uma gangorra. Depois de iniciar suas quimioterapias com um índice de PSA de 105 , agora começava a declinar. Já estava em 33 depois da quarta aplicação. Isto mostrava como a doença era sensível às drogas quimioterápicas e os resultados positivos logo apareciam.
Retornávamos nossos encontros na Academia e as seções de exercícios. A cada vinte e um dias, lá estava ele no Hospital para uma nova dose. As enfermeiras já o conheciam muito bem o que facilitava as aplicações. Um braço em cada vez, cuidando com isto a aplicação e a manutenção da qualidade das veias.
Os primeiros dois ou três dias após, eram de pequenos enjôos e indisposição. Depois disso já o encontrava na Academia, um pouco pálido e desgastado, mas animado com os resultados.
Seu oncologista na última consulta recomendou um estudo de DNA das células tumorais.Realizado com material da biopsia, retiradas quando do diagnostico. Um Instituto Americano especializado, fazia este exame. Neste laudo, além das características das células, vinha também uma descrição das drogas conhecidas, ao qual elas eram sensíveis. Isto poderia ajudar no tratamento e na escolha de futuras drogas.
Neste dia, fizemos várias digressões sobre o câncer e suas várias faces. Disse a ele que havíamos lido, todos nós temos um câncer dormindo em nós.Como todo o organismo vivo, nosso corpo fabrica células defeituosas permanentemente.E por isso nascem os tumores. Mas nosso corpo também é equipado com múltiplos mecanismos que permitem detectá-los e contê-los. No Ocidente , uma em quatro pessoas vai morrer de câncer, mas três em cada quatro não morrerão. Para estas, os mecanismos de defesa terão derrotado o câncer. Falamos sobre o livro do Anti Câncer do Dr. David Servan Schreiber e suas dissertações sobre o assunto.
Meu amigo comentou não existir até hoje nenhuma abordagem alternativa capaz de curar o câncer. No presente, é impensável pretender tratar a doença sem recorrer às excepcionais técnicas desenvolvidas pela medicina ocidental: cirurgia,quimioterapia, radioterapia, imunoterapia e logo a genética molecular. É igualmente absurdo remeter-se apenas a essas abordagens convencionais e negligenciar a capacidade natural do nosso corpo de se proteger contra os tumores, seja para prevenir contra os tumores, seja para prevenir a doença , seja para acompanhar os tratamentos.
Também ficou claro que há três pontos chaves a serem observados, no trato desta doença e sua prevenção: a importância do “terreno” , os efeitos da consciência e a sinergia das forças naturais. No caso da medicina ocidental , que trata de uma determinada doença com uma intervenção ou medicamento preciso, é maravilhosamente eficaz em situações de crise. Todos os dias ela salva vidas, através de uma operação de apendicite,ou a penicilina em uma pneumonia, etc. Mas ela revela rapidamente seus limites quando se trata de doenças crônicas. Por exemplo, um infarto... O paciente chega à beira da morte, pálido e o peito esmagado pela dor. A equipe médica guiada por anos de pesquisas de ponta, com milhares de pacientes, sabe exatamente o que fazer. Em menos de dez minutos o paciente respira normalmente,a vida daquele paciente foi salva, e ele é visto até sorrindo para os familiares. Contudo, além do sucesso maravilhoso desta intervenção, a doença propriamente dita, a obstrução progressiva por placas de colesterol das artérias coronárias, não foi tocada pelos médicos da emergência. Para evitá-las de maneira duradoura é preciso mudar o “terreno” : corrigir a alimentação,modificar a atitude mental e reforçar o organismo por meio de exercícios.
 Uma frase de um grande pesquisador francês René Dubos : “Sempre pensei que o único problema da medicina cientifica era o fato de ela não ser suficientemente cientifica. A medicina moderna só se tornará verdadeiramente cientifica quando os médicos e seus pacientes tiverem aprendido a tirar partido das forças do corpo e do espírito que agem através do poder de cura da natureza”.
Nosso corpo é um imenso sistema em equilíbrio, onde cada função está em interação com todas as demais. A modificação de um único desses elementos afeta necessariamente o conjunto. Cada um pode escolher por onde deseja começar: alimentação, atividade física, trabalho psicológico, ou qualquer outra abordagem que traga mais sentido e consciência a própria vida. O importante de tudo é alimentar o desejo de viver. Alguns farão participando de um coral, mergulhando em filmes cômicos, fazendo um diário ou escrevendo como fez meu amigo.
Ter consciência disso é realmente fundamental e prestar atenção aos sinais do corpo é essencial para quem deseja viver plenamente e por muito tempo. 

J T Brum 2018

 

 

segunda-feira, dezembro 17, 2018





15º Encontro  A opção pela Escrita !!

 

Como sempre encontrava meu amigo na Academia, alegre e cheio de animo. A perspectiva de começar na semana seguinte, um novo período de quimioterapia, não parecia abatê-lo.

 Ao contrário, ele encarava como parte do processo para debelar a doença e como os efeitos colaterais das quimios não era tão agressivo, ele suportava muito bem. Claro que tinha perdido o tônus muscular e a energia , mas tinha reciclado seus movimentos e exercícios, a sua capacidade atual. Suas corridas estavam restritas a trechos mais curtos.
Falamos de sua incursão pela escrita. Ele estava entusiasmado. Estava frequentando um curso de Escrita Literária, indicação de um amigo. Embora fosse incipiente e faltasse à vivência no trato com as palavras, sentia que existia um imenso caminho a percorrer entre seu patamar, as técnicas e conhecimentos da arte de usar as palavras. Era como se fossem pinceladas numa tela . A precisão de cada palavra no texto e o conjunto delas, fazia um texto palatável e atrativo. Aprender isto, possivelmente será a essência de escrever bem!! E o leitor reconhecia isto.
Outra faceta que está utilizando é o fato de servir a escrita como terapia. Tem lido a respeito e acha que está no caminho certo. A escrita tem benefícios inegáveis sobre muitos aspectos da nossa vida: alivia nossa angústia, nos ajuda a dar forma, entender e solucionar o que nos preocupa.
Escrever é uma forma de terapia. Às vezes me pergunto como conseguem escapar da loucura, da melancolia e do pânico, que são estados próprios da condição humana, os que não escrevem, não compõem e não pintam.”-Grahan Green-
Para mim, escrever é viver, conhecer, ser arqueólogo de si mesmo. “Escavar, e quando escavamos descobrimos dentro de nós o criminoso e o santo, o herói e o covarde”.-José Luis Sampedro-
Ele sentia-se muito melhor. A imaginação viajava. O convívio com os colegas do Curso e os desafios de cada aula o enchia de motivação e dedicação aos exercícios e testes propostos pelos Orientadores.
O fato de escrever e expor não só a mim como amigo, mas de publicar num blog suas emoções, angústias e alegrias, tinham a finalidade de mostrar um aspecto positivo, a todos e em especial a quem vive ou tem algum familiar, que passa por semelhante situação.
 A intenção de ajudar, é um pouco egoísta segundo ele, pois ele é o grande beneficiário do processo de escrita  e não nega o fato de sentir-se melhor e lisonjeado, com tantos que retribuem e manifestam sua solidariedade e votos de plena recuperação.
Quem visita os hospitais e salas de espera , muda a perspectiva sobre saúde e a fragilidade do nosso corpo, em relação às doenças. As defesas do nosso organismo são armas que estão a nosso serviço, mas quando falham , os efeitos são por vezes devastadores e precisam ser rapidamente diagnosticadas e recompostas. Ter saúde boa é um privilegio, que só nos damos conta, quando nos falta. Cuidar no dia a dia, com boa alimentação, exercícios e uma vida regrada, traz sempre os benefícios a longo prazo.
Eu e meu amigo estamos já há muitos anos na Academia. Quinze ou vinte anos atrás, não havia academias e quem caminhava diariamente era visto como um excêntrico. No entanto as necessidades de hoje são as mesmas do passado. Os próprios médicos, que antes não enfatizavam a necessidade de exercícios, hoje são exigentes para combater o sedentarismo.
O fato de meu amigo praticar exercícios, faz com que os efeitos colaterais das medicações sejam minorados e seu estado de animo muito melhor. Energiza seu organismo.
Pelo visto, neste fim de semana vai a praia, na casa dos parentes. Quem sabe até correr com as amigas e tomar uma água de coco , no quiosque. 

JT Brum 2018


terça-feira, dezembro 11, 2018




14º Encontro     Reveses à vista !

Encontrei meu amigo na Academia. Estava bem depois dos ias que passou em Montevidéu. Mas tinha que voltar a realidade. Os exames não deixavam dúvida: seu PSA subia geometricamente. Sua folga as quimios estava indo ladeira a baixo. Era disciplinado e sabia que os tratamentos funcionam bem em determinadas situações.
Comentamos sobre a situação o Uruguai e outros países da América Latina. Infelizmente muitas semelhanças, para pior. Voltamos aos nossos exercícios. Ele não parecia muito animado. Embora não sinta os efeitos dos exames recém feitos, . Tinha vontade de correr. Foi o que diz que faria no dia seguinte.  A endorfina era a vitamina que reforçava o seu ânimo.
O verão estava chegando. As corridas na praia lhe faziam muito bem. Tinha amigas vizinhas que o convidavam para correr cedinho. Sentia-se integrado ao pequeno grupo de corridas. Poucas vezes, com tanta ênfase confessou-me sua paixão por correr. Lembrou-me do livro que lhe dei . Já saboreou quase todo...
Nos próximos dias iria ao médico para confirmar quando iniciaria com as quimios. Certamente de 21 em 21 dias. Ele levava em torno de dez dias para se recuperar e ter sua imunidade restabelecida. Depois era aproveitar os dias restantes.
O médico confirmou a nova quimioterapia. Diferente da anterior : Cabasetaxel e um dia após uma injeção na barriga de Neuslatin. Segundo o médico ameniza os efeitos colaterais.
Tudo parecia voltar aos eixos. Já que não conseguia se desgarrar da doença, o negócio é seguir em frente levando-a a tiracolo na sua jornada. Segundo ele , sua família estava mais conformada. Tinham assimilado que era uma doença crônica , cujo tratamento é longo e permanente.
Alguns homens de fé têm conseguido a cura. Mas cada um tem suas contas para pagar e suas penitências para fazer. Meu amigo não se lamentava nem perdia o otimismo. Às vezes ficava sem aquele sorriso alegre, mas logo se recobrava.
Confessava que o segredo estava em encontrar uma nova perspectiva de vida. Uma nova forma e carregar suas dificuldades dentro das limitações que a situação permitia.
Achar algum hobby novo. Pintar. Cantar, ou escrever. Coisas que se fizessem sonhar de novo. Esta tentativa tinha que ser autentica, vir de dentro. Do âmago. Para produzir os efeitos desejados.
Dizia ele que mesmo estando ruim, poderia ficar muito pior. Então era aproveitar o momento! Sentia-se apaixonado pela vida.
Meu amigo , procurou na escrita uma forma de canalizar suas aspirações, sonhos e paixões. Mostrou-me uns textos.  Dei força. Disse que iria fazer um curso de Escrita Literária, para aperfeiçoar as técnicas da escrita e de imaginação criativa.
Dizia que para escrever , realmente há que se ter certo talento, mas que concentração e perseverança, são ingredientes essenciais , sem os quais nada se consegue. Ter ritmo e poder de concentração é fatores decisivos para escrever.
Mais um fim de semana chegando e a possibilidade de ir para a praia, na casa dos parentes, o deixava animado. Tomar sol. Correr com as amigas. Até uma cervejinha tomava...

JT Brum 2018


sábado, dezembro 01, 2018




Mensagem do amigo.

 

Recebi um cartão postal do meu amigo. Pela ilustração pude constatar que era de Montevidéu. Ele nem me avisou que iria viajar. Ou de férias ou a negócios. Quem sabe outra razão...

Apreciei pela lembrança e pela dedicatória :

Amigo de todas as horas, meu fiel escudeiro. Aqui em terras distantes, sinto falta dos nossos papos e dos teus conselhos , sempre tão pertinentes e confortadores .Com um abraço forte ...”

Ele andava meio misterioso nos últimos dias, não sei se pelo tratamento ou pela evolução da sua doença.

Tenho visto ele receber o apoio e a força dos amigos próximos e outros até distantes que acredito que ele acaba incorporando esta energia na ua vida.

Vou aguardar o seu retorno, acreditando que volte cheio de energias e muita saúde.

 

JTBrum 2018