17º Encontro : Medos e contos !!
As semanas corriam e nós continuávamos nossa rotina . Dos
encontros na Academia, às conversas alongadas entre os exercícios. Os números
do PSA no último exame melhoravam. Ficava muito mais animado. Agora estava com
15. E as quimioterapias continuavam . Passava incólume por elas, embora com os
inconvenientes de sempre.
Falamos dos medos e de
pensamentos que assombram a mente das pessoas, que por razões de doenças ou de
depressão sentem-se acuadas. Medo de ficar sozinho. Medo de ser um fardo. Medo
de abandonar os filhos e os netos. O medo das histórias inacabadas. Hoje a
palavra “câncer” não é mais sinônimo de morte. Mas ao ouvi-la pela primeira vez
falta o chão. Ela evoca medos. Sombra, onde existia só claridade.
“Para muitos
pacientes, é a oportunidade de refletir sobre a própria vida, sobre o que se
quer fazer dela. Sim, é possível que eu morra mais cedo que o previsto. Mas é
possível que eu viva mais tempo também. Em todo o caso , agora vou viver a
minha vida da melhor maneira possível. É a melhor maneira de me preparar para o que
vai acontecer, para o que quer que tenha que acontecer.” (David S.Schreiber)
Trocamos de pauta. Falamos
sobre contos, crônicas e poesias. Agora era seu assunto preferido. Sempre tinha
um aspecto interessante a contar ou uma referencia de algum instrutor do curso
que valia a pena referir. Ai sem mais, nem menos, me veio ele com um texto,
retirado da mochila, e me pediu para ler e opinar.
O
uniforme era o disfarce.
Francisco
acordou neste dia antes que sua mãe o chamasse. A expectativa de participar
pela primeira vez do desfile de Sete de Setembro fazia seu coração bater mais
rápido. Correu os olhos em cima da cama para confirmar se seu uniforme estava
ali. Viu a camisa branca, as meias e a calça azul marinho. E os sapatos? Eles
tinham ido comprar num local chamado bric-brac.
-Mãe! E os sapatos?
A
mãe correu para a cozinha. Deu-se conta da tragédia. Colocou para secar no
forno do fogão de lenha. Ficou ali.
Mãe
solteira e empregada doméstica colocava todos seus ganhos para manter Francisco
numa escola de irmãos lassalistas e sonhava vê-lo formado. O uniforme era o
disfarce necessário para proteger o menino de qualquer discriminação.
Na
cidade, os jovens vivenciavam estes dias como se fossem os únicos a desfrutar
deste momento. Havia uma disputa entre as escolas, pela melhor apresentação nos
desfiles. A preparação começava ainda em agosto. Ainda fazia muito frio e os
ensaios eram organizados pela manhã. O alinhamento, o passo certo, a cabeça
erguida, eram requisitos para ter uma marcha de grupo, como um pelotão militar,
perfilados e sem correções.
Para
Francisco, todo o dia ensaiava com sua turma, o dia chegou. O sapato retorcido
pelo calor não permitia que seu pé se acomodasse no calçado, por mais que
tentasse. Francisco começou a chorar. A mãe buscava alternativa. Outro sapato?.
Mesmo com dinheiro, onde comprar naquela hora? Tinha que pensar e rápido.
Prometeu que no nosso próximo encontro, traria o final da
historia. Fiquei curioso e cobrei o restante do texto. Ele sorriu enigmático e
disse-me que tivesse calma ...
Estava tomando gosto pela escrita e os aspectos mais críticos
de sua doença pareciam ficar no seu subterrâneo interior, mergulhada entre água
cristalina e as impurezas decorrentes dos pensamentos obscuros da moléstia.
Estes lances do meu amigo, às vezes cômico, por vezes
taciturno, davam um inesperado tempero, para nossos encontros. Saíamos sempre
na expectativa do que nos reservava o dia seguinte.
JT Brum 2018