segunda-feira, janeiro 28, 2019



21º Encontro    Reflexões sobre a vida.

 

 

Fui à Academia, naquela manhã de primavera, em que o tempo homenageava a vida. Chegando, vi o meu amigo conversando com outro companheiro – que também enfrentava uma situação de saúde momentaneamente adversa –, e com dois professores. O tema prometia: falavam sobre a fragilidade da condição humana.

Meu amigo expunha que na semana passada tinha escutado alguém cético, depois de visitar uma clínica de idosos, afirmando que o homem é como uma casca de noz na correnteza, incapaz de controlar o rumo da sua própria vida, sendo levado em frente mesmo contra sua vontade, impulsionado pelas circunstâncias aleatórias, boas ou más.

Naquele mesmo instante me lembrei de uma frase, que ouvi de meu pai ainda criança, e a repeti a eles: “Um braço vigoroso não é mais aguerrido contra a lança do que um braço frágil; são o caráter e a coragem que fazem o guerreiro”. Em outras palavras, a grande chave que abre as portas da vida plena está na mente e não no físico.

 Mesmo que se esteja ocasionalmente vivendo uma situação de redemoinho, com a sensação de que não podemos mudar o curso inexorável dos acontecimentos, ainda assim é possível observar que sempre há alternativas e opções de conduta para lidar com a situação – qualquer que seja a adversidade do momento.

Ouvi do meu amigo e dos outros companheiros que estavam ali reunidos gestos de confirmação plena dessa verdade. Um deles disse que, mais do que uma convicção, esse é um sentimento intuitivo, com a percepção formada ao longo da existência.

Acrescentei que somos de fato, todos nós, pessoas complexas, e todos podemos sentir ou demonstrar certa fragilidade, mas somos, na realidade essencial, forjados de algo que transcende substancialmente a matéria aparente, e aí seguimos movidos por forças extraordinárias que nos emocionam e orientam a cada novo dia para os melhores caminhos.

 Assim, mesmo que não tenhamos resposta para diversos acontecimentos de nossa vida, e às vezes com a consciência de que não sabemos enfrentar determinada situação, há algo que nos move para diante. Ao reconhecer certas limitações para seguir num determinado rumo, que em princípio nos pareceria o preferível, a verdade é que, a partir desse reconhecimento da própria fragilidade física, e da consciência da fortaleza moral, se apresentam outros tantos caminhos a serem percorridos.

 A consciência da limitação ou da imperfeição, com a certeza de que somos amados apesar de tudo, são os elementos que nos fazem verdadeiramente humanos e nos fortalecem para a tomada das pequenas ou grandes decisões de cada dia.

O meu amigo observou, sobre esse ponto, que, quando deixamos de pensar apenas em nós e somos capazes de sentir as dores do outro, de ter compaixão e de vibrar com a descoberta das espantosas estradas que se abrem para cada um de nós, não importa em que circunstância da existência nos encontre, aí estará à essência da vida.

Nossos vínculos com a sociedade, com os amigos, em especial com nossa família, nos amarram e ligam como participantes deste processo, independente do poder aquisitivo, nível social ou cultural de cada um de nós.

Na Academia vemos isto diariamente. São pessoas, seres humanos, numa sociedade em busca de qualidade de vida, de saúde, e muitas de convívio social. Muitos têm nos amigos da Academia, seus únicos pontos de referencia e seus pontos de apoio. Outros, calados, fechados na sua ilha de isolamento, não tomam conhecimento sobre o que se passa ao seu redor, entram e saem , sem compartilhar nem participar da vida aos demais integrantes. Quem está certo? A vida dirá.

Feitos os exercícios do dia, saímos todos para nossas casas, com o eco dessas constatações e sob a luz da primavera.

 

JT Brum 2019

segunda-feira, janeiro 21, 2019



20° Encontro: Pelo retrovisor

Estamos quase no fim de ano. Época de arrumações, planos de férias, balanço do que se passou. Eu e meu amigo não somos diferentes e nossa atividade na Academia continuava a pleno vapor e os planos também.
Propus a ele, rever fatos que juntos passamos nestes últimos dois anos, em especial neste ultimo, que ainda estão mais presentes na nossa memória. Foram dias de alegrias intercalados por alguma angustia. Nossos encontros serviam de amortecedor e anteparo, para os solavancos desta estrada, sinuosa e com muitos percalços.
Relembramos os primeiros dias da suspeita, da recomendação da biopsia e do tiro fatal do diagnóstico. A confirmação do câncer.
A partir daí, a historia não precisa se recontada, nem relembrada. Tivemos bons momentos entre nossos exercícios e bate-papos. Muitos de extremo gosto e humor, outros de suporte e conforto, de amigo para amigo.
Tenho testemunhado a força e a fé com a luta para vencer suas batalhas diárias. Nem sempre bem sucedido no primeiro momento, mas logo em seguida, recupera-se e segue em frente. Cair e levantar. Buscar forças em Deus. Ele me agradece e diz que sou generoso em minhas palavras.
Um fato ele fez questão de relembrar, foi o encontro com meu filho, na Academia. Do olhar de espanto dele, quando o apresentei como o amigo, pelo qual rezávamos em família, todas as noites . Rezamos por muitos amigos doentes, alguns em grandes dificuldades de saúde. Quando ele ouviu o nome, arregalou os olhos e deve ter pensado, este não precisava das suas orações!!
Meu amigo disse saber que, muitos rezam pela sua saúde. Pessoas sem muita afinidade e também pessoas próximas. Reconhece no entanto, as suas próprias orações não têm a intensidade e a fé necessárias, para promover a cura. Nisso lhe ajudava muito os períodos passados no CAPC, no Ribeirão da Ilha. Era como estar no céu , aqui na terra.
Nos dias atuais, meu amigo passava por um período de trégua na medicação (quimioterapia). A avaliação do comportamento do tumor, nos próximos meses, determinaria a estratégia a se adotada. Como era assintomático, ao menos teria um fim de ano, sem as complicações e efeitos colaterais da medicação.
Meu amigo fez menção também da iniciativa de fazer um curso de Escrita Criativa. Sua opção para canalizar na escrita suas tensões , emoções e criatividade parecem ter dado certo. Ele está muito motivado e conta dos escritores famosos que tem se apresentado no curso e como obtiveram sucesso: Trabalho. Trabalho e Trabalho. Nada vem pronto. Isto de certo modo confirma o que diz o escritor Haruki. “Há que se ter certo talento, mas concentração e perseverança é a chave para a grande maioria dos mortais que se dedicam a escrever e conseguir algum sucesso.”
Entediado e baixo astral, se junta à falta de inspiração, e ai o texto não flui. Os pensamentos ficam repetitivos, e a seleção torna-se cansativa. Por isso persistência e concentração. Saber do tempo dedicado a escrever tem que ser bem aproveitado e eficientemente produtivo.
Pinçar detalhes e fatos ao nosso redor. Ouvir opiniões e revisar os últimos dias, nos ajuda a moldar, de forma organizada os pensamentos e colocar no papel aquilo, para nosso leitor mergulhar e sentir. Sentir empatia com o texto.
Meu amigo alega nestes dias de fim de ano, com tanta agitação e reboliço, tem tido dificuldades, para colocar nos textos, com exatidão o que muitas vezes se passa na sua cabeça e reproduzir nossas conversas. Possivelmente um mecanismo de freio e preservação esteja sendo ativado, inconscientemente e ele sinta-se invadido, no seu interior. Sempre temos coisas só nossas, pequenas dores que não nos queixamos e desagrados da alma que não confessamos. Os seres humanos são complexos, independente da idade, da saúde ou nível social. Nem por isso desiste. Continua a buscar palavras adequadas e frases que correspondam ao seu íntimo e que façam sentido para os leitores. Não quer transformar seus escritos numa via sacra de sacrifícios e peripécias, num relato de prontuário médico, onde pode-se ler as melhoras e quedas da qualidade do tratamento. 

JT Brum 2019

 


segunda-feira, janeiro 14, 2019




19° Encontro : Mutações. 

Nos encontramos hoje cedo na Academia. Estávamos ávidos pelos exercícios e pelas novidades. Meu amigo entusiasmado com as noticiais e informações do médico Oncologista.
Seu PSA chegou a 13 e com isto a estratégia a ser adotada será da suspensão das quimioterapias, para ir avaliando novamente o comportamento do tumor e a remessa de metástases no organismo, em especial para os ossos, no caso de próstata. Há uma relação de tempo decorrido e a velocidade de crescimento do PSA. Mensalmente faria exames para avaliar, bem como dos demais marcadores.
Ele sabia que a situação era de apreensão , mas convivia com isto , com certo otimismo e esperança.
Falamos sobre amigos e pessoas conhecidas. É assustador o número de pessoas vitimas de doenças novas a cada dia. Possivelmente por que nosso circulo de amizades e referencias sejam pessoas com mais de sessenta anos. Nesta faixa, o Alzheimer, Parkinson, depressão, câncer de estomago, de pele etc.
Já nas camadas mais jovens, infelizmente outras mazelas ocorrem, como a depressão, as drogas, e por vezes algum tipo de câncer fulminante, como no caso, os de mama e melanomas.
Graças aos diagnósticos precoces, estas doenças têm sido identificadas e tratadas com sucesso, na maioria dos casos.
Meu amigo me alertou para um aspecto que tem orientado sua vida e seus contatos. Quando lhe perguntam como vai, responde que está ótimo. Não fala da doença, nem “curte” uma situação de vítima, nem se lamenta ou se queixa. Só os mais próximos sabem do andar do seu tratamento. Ainda mais agora que parou com as quimios e esta passando os efeitos colaterais deste tratamento . Perde a cor amarelada e os cabelos voltam. Até então, esta escrito na testa  “Em tratamento oncológico”.
Um amigo da academia veio nos falar do conto que tinha lido. Disse que isto , o fez lembrar sua infância em Pelotas e as dificuldades da época , para ter o uniforme completo, em ordem no dia do desfiles. Até sapato marrom , ele pintou de preto, para poder desfilar.
Voltamos a comentar sobre as pesquisas e tratamentos do câncer e as dificuldades dos médicos, embora diagnosticada a doença, em acertar as medicações, dosagens e prescrições a seus pacientes. Os estudos têm mostrado , as mutações dos tumores, ao longo dos anos. A avaliação de DNA de um tumor realizado há três anos, considera-se obsoleto, tais as alterações que sofre.

Como cada paciente tem características próprias e que muda ao longo dos anos .É impossível ter dois iguais, como as digitais individuais.. Com isto, só por tentativa , erro e protocolos catalogados, são possíveis os tratamentos. Por isso, as melhoras e regressões dos pacientes são tão frequentes. O próprio organismo e os tumores, criam resistências às drogas, protegendo-se e buscando formas de escapar do extermínio.
Nisso está uma das vantagens do diagnostico precoce, quando as células tumorais ainda estão suscetíveis ainda aos tratamentos convencionais.
Mas a principal mutação do ser humano está no seu interior. Na forma como ele vê a doença, com se relaciona com ela, como encara seu dia a dia. Aqui já comentamos muitas vezes sofre as fases de negação, contestação, revolta, e aceitação. Este processo continua ao longo dos anos, dependendo da fase do tratamento e dos resultados destes, em relação à doença. Esta deve ser a principal mutação por que passa o paciente, embora não seja detectável nos exames.
Paramos de falar de doença e passamos a falar dos  colegas que se preparam para a Maratona de Porto Alegre. Alguns vão correr pela primeira vez. Outros já calejados, conhecedores do percurso e das peculiaridades , para enfrentar o frio da manhã e o calorão a partir das dez horas. Será no próximo fim de semana.

JTBrum 2019


segunda-feira, janeiro 07, 2019



18º Encontro : E quando falta a espiritualidade ?

Os ventos favoráveis impulsionavam o barco de esperanças de meu amigo. Nesta semana estava quase eufórico. Seus exames demonstravam isso. O PSA tinha caído para 13. Não estava totalmente eufórico, porque tinha consciência que os números não são absolutos e às vezes, tem embutido questões que o laboratório não capta. Seu estado geral era muito bom em todos os demais marcadores.
Com isto, iniciamos mais uma semana de exercícios na Academia. Aproximava-se a Maratona de Porto Alegre e muitos colegas iriam participar. Alguns na Meia Maratona, outros nos 10km. Meu amigo ficava se lamentando. Há dois anos, tinha corrido a Meia Maratona , com um tempo excelente para sua idade (68anos): 1h 58min , nos 21.150 m. Ele me contou não havia corrido tal distancia. Fazia normalmente 10km nas competições. Nesta, ele correu como nas habituais. Correu os primeiros 10km e depois o resto era lucro. Quando viu a marcação de 15km deu-se conta que só faltava 5km e apertou o passo. Assim foi indo para o final :21.150m. Seus filhos o aguardavam na linha de chegada, para felicitá-lo.
Agora, isto era coisa do passado e não sabia se um dia voltaria a correr. Seu desejo e impulso não diminuíam, mas suas pernas, desgastadas pelas quimioterapias não lhe davam condição. A musculação na academia ajudava , mas o pulmão parecia ter que bombear oxigênio , num ambiente de ar rarefeito. Não supria suas necessidades.
Uma senhora amiga da Academia, cujo marido enfrentava também um câncer no estômago, veio lhe perguntar sobre suas visitas a Florianópolis, no Ribeirão da Ilha e como isso poderia ajudar seu marido. Alegava no entanto, ele não tinha nenhuma espiritualidade.
Percebi meu amigo ficou sem palavras . Depois se dirigindo a ela perguntou :
— Em que ele acredita? Seu desejo de cura vem de onde? Ele tem que encontrar dentro dele, uma pequena chama, uma esperança para cultivar. O desejo de viver deve vir acompanhado de fé nos medicamentos, nos médicos e depois no sobrenatural. Não se vende espiritualidade em farmácias. Quando se vai ao fundo do poço, para emergir, só se sobrevive se acreditarmos em algo mais.
Ela agradeceu e saiu cabisbaixa. Não comentamos mais sobre o assunto. Meu amigo tinha posições muito claras sobre isso . Ele foi feliz na resposta, induzindo ela a ajudar o marido, na buscar por respostas dentro dele.
Lembrei-me do conto incompleto que ficou para trás, semana passada. E cobrei. Ele prontamente foi a sua mochila e voltou com uma folha impressa:

O uniforme era o disfarce.

Francisco acordou neste dia antes que sua mãe o chamasse. A expectativa de participar pela primeira vez do desfile de Sete de Setembro fazia seu coração bater mais rápido. Correu os olhos em cima da cama para confirmar, seu uniforme estava ali. Viu a camisa branca, as meias e a calça azul marinho. E os sapatos? Eles tinham ido comprar num local chamado bric-brac.
 -Mãe! E os sapatos? A mãe correu para a cozinha. Deu-se conta da tragédia. Colocou para secar no forno do fogão de lenha. Ficou ali.
Mãe solteira e empregada doméstica colocava todos seus ganhos para manter Francisco numa escola de irmãos lassalistas e sonhava vê-lo formado. O uniforme era o disfarce necessário para proteger o menino de qualquer discriminação.
Na cidade os jovens vivenciavam estes dias como se fossem os únicos a desfrutar deste momento. Havia uma disputa entre as escolas, pela melhor apresentação nos desfiles. A preparação começava ainda em agosto. Ainda fazia muito frio e os ensaios eram organizados pela manhã. O alinhamento, o passo certo, a cabeça erguida, eram requisitos para ter uma marcha de grupo, como um pelotão militar, perfilados e sem correções.
Para Francisco, todo o dia ensaiava com sua turma, o dia chegou. O sapato retorcido pelo calor não permitia que seu pé se acomodasse no calçado, por mais que tentasse. Francisco começou a chorar. A mãe buscava alternativa. Outro sapato?. Mesmo com dinheiro, onde comprar naquela hora? Tinha que pensar e rápido.
Nos desfiles, a banda era o centro das atenções. Treinavam todos os dias secretamente, para impedir seus acordes pudessem ser copiados pelas demais escolas. O maestro rege banda, com sua batuta, ditando o ritmo dos bumbos, tarolas, pratos e clarins. Ele chamava para si a atenção e concentrava todos os olhares e ouvidos. Cada membro sabia seu papel, quando devia entrar e qual sua participação nesta partitura. Mas a cereja do bolo era a baliza. Uma aluna era a escolhida para ir à frente da banda fazendo coreografias.
Num uniforme com jaqueta de veludo bordada, meias brancas longas, cobriam as pernas e um short curto da cor da jaqueta.  Luvas, chapéu e com um bastão, levado na mão direita, completavam a indumentária. Como uma rainha de bateria ela ditava o ritmo da banda. O charme, a concentração e a ginga marcavam sua apresentação. Era um show à parte.
As autoridades, postadas no Altar da Pátria, viam passar as escolas e bandas, as quais eram aplaudidas e faziam continência ao cruzar em frente a elas. E ali vinha Francisco, com o peito estufado, uniforme completo, no mesmo ritmo dos demais. Nem sentia os pés. Apenas uma umidade neles. A mãe, orgulhosa, sabia que estava no caminho certo.
 No momento de hastear a bandeira, todos cantavam o Hino Nacional. Nas calçadas lotadas podia se ouvir o rufar dos tambores e os gritos de mães e parentes, entusiasmados com a apresentação das crianças e jovens.
 Quando terminou, Francisco procurou sua mãe no meio da multidão. Bastou um aceno. Seu olhar brilhou. Como uma centelha, ele lançou-se aos seus braços. Então, ela o abraçou e abaixando-se, retirou seus sapatos. As meias estavam vermelhas de sangue. O corte cirúrgico que ela fez nos sapatos, retirando o contraforte com uma faca afiada e embebendo com álcool, para o couro dar de si, não impediram os ferimentos. Os pés estavam lanhados. Mesmo assim, o desfile tinha um gosto especial para os dois. Ninguém tinha percebido. O uniforme era realmente um disfarce perfeito.
— Mas bah tchê !! Falei com voz entusiasmada. Você está melhor que a encomenda! De onde tira essas ideias ? Nas madrugadas em vez de dormir, ficas criando “causos” ? Rimos muito e pedi para ficar com o conto impresso.
Nossos encontros começam ou terminam de forma surpreendente. Isto dá sabor aos nossos dias e abre perspectivas para nossa amizade, sempre crescente.

JTBrum 2019