31º Encontro : Distâncias e memórias
Depois de um intervalo maior que imaginava, voltei a encontrar
meu amigo no estacionamento da Academia. Mais magro e um pouco pálido, mas
sempre sorridente. Nos abraçamos e começamos um papo acelerado, para matar a saudade.
Revisamos os últimos tempos. Eu contando as viagens à Austrália, para visitar
minha filha. Ele contando das suas peripécias e tratamentos. Agora parecia bem,
tinha voltado a caminhar e se alimentar melhor. Tinha até uma fisioterapeuta
para retomar a forma.
Entre as tantas atualizações, contou-me do tratamento em
Montevidéu, com um radiofarmaco, chamado Lutécio, injetado na veia, tem o poder
de destruir as metástases ósseas. Neste período de tratamentos, teve altos e
baixos, mas não baixou seu PSA. Conseqüência : Passaram-se alguns meses , para
ter a comprovação de que no seu caso não funcionara. Foi obrigado a desistir.
Nas noites de dores e insônia, nesta semana, diz ter
levantado para ir ao banheiro e um pensamento de satisfação acudiu-lhe. Veio
com um vídeo, num relance e ele viu-se com dez anos, calças curtas, chinelinho,
ajudando seu pai numa mangueira na fazenda.
Muita poeira no ar.Um burburinho.O grito dos peões. O
relincho dos cavalos, o estalar dos relhos e o gado mugindo, tentando escapar.
Apertado nos cantos da mangueira, os peões laçavam e depois maneavam arrastando
até próximo do fogo de chão . Seriam castrados e aplicado o ferro quente da
marca. Aquilo para ele, tinha um sabor
de aventura e os olhos pretos, vivos , brilhavam a cada lance. O bezerro laçado
pelos chifres e com outro laço nas patas trazeiras , era estendido no chão, pelos
peões, de modo não pudesse se movimentar. Ai vinha meu pai, com o bisturi em
mão, apoiando o joelho no lombo do animal, apalpava , buscando os testículos.
Segurava um e pressionava contra a parede do saco escrotal, fazendo uma pequena
incisão, de modo a permitir que o testículo viesse para fora. Tudo muito
rápido.Como era médico manuseava o bisturi com destreza. Segurando o testículo,
recoberto por uma fina membrana de tecido, era retirada, de forma a ficar
aparente. Ai sim era cortado na sua ligação , dois dedos abaixo. Jogado numa
bacia , que ele, o menino aprendiz atentamente carregava.Passavam um ungüento
no saco , logo depois da marca o bicho era solto.
E logo vinha com outro berrando e estirado. O processo se
repetia. Sempre atento a todos os detalhes , mas não previa que num desses
casos, a pata do boi, escapasse do laço e viesse na sua direção. Ergueu a bacia
e saltaram testículos e sangue para todo lado inclusive na sua cara. Sua defesa
foi intuitiva. Seu pai o socorreu e sentiu-se muito feliz e orgulhoso. Foram
poucas vezes na vida, que sentiu está proteção paterna. Esta cumplicidade paterna
calou fundo e gerou uma afeição pelo gesto.Foi valente, sem temer o perigo. Como
era o primogênito, deveria ser capaz das lidas de campo e dos trabalhos na
mangueira. Assim se talhavam os meninos da época.
Depois de me contar isso, pude sentir pelo seu entusiasmo ,
como estas memórias lhe faziam bem. Pude também constatar que nossa distância,
embora dilatada nestes últimos tempos, em nada mudou nossa interação e a
facilidade que temos em nos comunicar. Verdadeiros amigos, embora distantes e
por mais tempo que fiquem afastados, a essência do seu relacionamento e
afinidade, permanecem inalteradas.
Despedimos-nos depois de uma boa conversa, certos de Deus nos
reserva bons momentos e oportunidades para ser felizes . Nosso intento é
aproveitar ao máximo esta dádiva.
JTBrum 2019